fonte: CIPE
Em nota técnica divulgada em 22 de junho, CIPE reafirma seu compromisso com a cirurgia fetal e a pesquisa médica no Brasil, destacando avanços no tratamento cirúrgico da gastroquise.
Confira:
São Paulo, 22 de junho de 2019.
NOTA TÉCNICA
Gastrosquise é uma malformação congênita caracterizada pela extrusão de vísceras abdominais através de um orifício na parede abdominal próximo ao cordão umbilical. É uma doença comum (1:2500 nascidos vivos) e sua incidência está em ascensão. Embora seja grave, não costuma estar associada a outras anomalias e o tratamento proporciona uma sobrevida normal.
As gastrosquises são tratadas com uma cirurgia feita imediatamente após o nascimento, na qual o orifício abdominal é fechado após reposicionar corretamente as vísceras que estão externas à cavidade abdominal. Em cerca de 1/5 dos bebês isso não é possível, porque a pressão abdominal aumentada por causa do aumento de volume visceral é insuportável fisiologicamente e dá origem a um distúrbio chamado síndrome de compartimento abdominal, que tem risco de morte. Nestes casos é usado um dispositivo plástico auxiliar que chamamos de silo, que permite trazer o conteúdo externo à cavidade abdominal lentamente enquanto a capacidade abdominal cresce até ser possível o fechamento definitivo.
O tratamento da gastrosquise é uma conduta de sucesso, com mortalidade em torno de 5% nos melhores centros mundiais. No Brasil a mortalidade perinatal é de 10 a 15% nos centros de referência para cirurgias neonatais com disponibilidade de cirurgiões especializados.
Estes bebês precisam ser tratados em centros de terapia intensiva neonatal com nutrição intravenosa durante um período relativamente prolongado, porque na maioria das vezes o intestino envolvido apresenta problemas funcionais transitórios causados por inflamação e episódios de isquemia durante a vida fetal (transitórios em sua maioria).
Este grande sucesso no tratamento não nos exime de buscar técnicas e táticas ainda melhores, capazes de evitar ou minimizar o período de terapia intensiva, nutrição especial e os casos incomuns de disfunção intestinal prolongada.
O tratamento fetal, ainda experimental e com achados incipientes, é parte destes esforços. Afinal, não se pode perder de vista que, no caso de gastrosquises, qualquer nova metodologia precisa ser melhor ou igual a uma taxa de 95% de cura.
Poucas publicações estudam o tratamento fetal das gastrosquises, todas experimentais em ovelhas e coelhos. Em vários trabalhos foi impossível conseguir a redução do conteúdo visceral nos fetos operados (Bergholz et al, Surg Endosc 2012, 26(5):1412-6) ou houve problemas fisiológicos graves após a cirurgia fetal (Kohl et al, Surg Endosc 2009, 23(7):1499-505), que fizeram este último grupo de autores concluir que o procedimento não é ainda transferível com segurança para humanos (Kohl et al, Surg Endosc 2009, 23(7):1499-505). Outros grupos reportam sucesso limitado a uma minoria de fetos portadores de gastrosquise induzida experimentalmente (Stephenson et al, J Pediatr Surg 2010, 45(1):65-9; Krebs et al, Surg Endosc 2014, 28(8):2437-42), em especial Roefols et al, com mortalidade de 4/12 e insucesso do procedimento fetal em 3/8 animais sobreviventes (Roefols et al, J Pediatr Surg 2013, 48(3):516-24).
Em resumo, há progressos em curso e muita esperança de que no futuro a cirurgia fetal possa solucionar ou evitar alguns dos problemas perinatais em fetos com gastrosquise, mas ainda restam muitos limites a superar. Em especial, não há ainda publicações científicas em fetos humanos nem um modelo preditivo do risco e tratamento da síndrome de compartimento abdominal fetal, uma complicação potencial específica do tratamento de gastrosquises intraútero já demonstrada em modelos experimentais (Kohl et al, Surg Endosc 2009, 23(7):1499- 505).
Cirurgias fetais têm implicações que vão além da criança/feto. Não equivalem a uma cirurgia neonatal feita mais cedo, já que o feto tem fisiologia própria, há riscos envolvidos para a mãe (inclusive risco de infertilidade ou complicações obstétricas graves em gestações futuras) e para a gestação (hemorragia uterina ou placentária ou parto prematuro, com mortalidade alta e sequelas permanentes frequentes, em especial neurológicas).
Em circunstâncias de inovação em medicina protocolos de experimentação precisam ser utilizados. Procedimentos pioneiros necessariamente precisam fazer parte de protocolos rígidos, exceto em condições especiais. Isto independe da eventual autorização de pacientes ou responsáveis, à exceção de procedimentos salvadores da vida na ausência de outras alternativas de tratamento (uso compassivo). Todas as demais situações precisam seguir a aceitação dos comitês de ética em pesquisa, conforme a lei brasileira e os protocolos de Helsinki.
Reafirmamos nesta nota técnica o compromisso da CIPE com a cirurgia fetal e com a pesquisa médica no Brasil. Várias equipes e muitos cirurgiões pediátricos se dedicam à cirurgia fetal e trabalham em vários centros no Brasil há mais de 30 anos, com afinco, merecido reconhecimento e ótimos resultados. Nossa divisão de cirurgia fetal, capitaneada por Dr Lourenço Sbragia, um pioneiro da cirurgia fetal no Brasil com reconhecimento internacional, é um dos nossos orgulhos. Cirurgia fetal é um sonho nosso e nunca esteve tão perto de ser realidade. Precisamos continuar. Com ética, bom senso e coragem, balizada pelos riscos envolvidos. Chegaremos a grandes conquistas, temos absoluta certeza.
A cirurgia neonatal objetiva prover à criança uma vida plena e saudável com o menor sacrifício possível para si e para sua família e o menor custo alcançável. Esta é uma hierarquia inabalável para os cirurgiões pediátricos, que também respeitamos para a cirurgia fetal.
Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica – CIPE